T de Revolução

Tem quem não quer ver, mas pra quem não anda com preguiça de realidade é cada vez mais óbvio o quanto os debates sobre orientação sexual e identidade de gênerotomam caminhos cada vez mais opostos, ao ponto até de um contradizer o outro. Tem até quem defenda a divisão e os afastamentos das “duas” (que na real são várias) militâncias e quer mais é ver o panquê. Respeito. Mas pra quem ainda acha que vale o diálogo, vamos falar sobre isso?
Pra começar, tenho dito sempre que acho compreensível o porquê dos rolês LGB evitarem se aprofundarem muito nas questões T: a real é que na profundidade que a gente tá hoje, os debates sobre identidade de gênero fodem lindamente a forma como orientação sexual vem sendo debatida! Sério, não é exagero, enquanto a gente tá pensando gênero como construto social, galera ainda tá caçando base genética pra orientação sexual e dizendo que “nasceu assim”. Como é que alguém nasce gostando de algo que é uma construção social? Que gene mágico é esse que determina atração por uma categoria social que só faz sentido em determinado contexto histórico? Ou a galera vai defender que tesão mesmo é só por buceta e pinto? Se for isso, volta dez casas e fica uma rodada sem jogar.
Dá pra entender que o papo de “nasci assim” precisou rolar como contraponto da ideia de “opção”. Entendo que é mais cômodo, também. Ok. Mas já deu, né? Já tá dando pra desapegar. “Nasci assim” e “escolhi” não são as duas únicas possibilidades de debate, como se precisasse ser necessariamente uma coisa ou outra. Não precisa. Se gênero é uma construção social (e é, confia na tia, podemos desenvolver isso melhor em outro momento), orientação sexual É UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL TAMBÉM. Isso não significa que tá dando pra escolher, nem que a “culpa” é da mamãe e do papai. Isso também não significa que no momento que dissermos isso vão começar a construir clínicas de “cura” e “técnicas de educação” pra que toda criança “vire” hétero –vão fazer isso quando quiserem, não importa o que a gente diga. A história prova. Mais útil é a gente estar o mais bem preparadas possível, e isso pressupõe termos coragem pra se aprofundar nas nossas tretas.
A sexualidade é uma das ferramentas que todo indivíduo tem de interação com o social e ela vai ser sempre normatizada pra corresponder ao modelo mais útil pra organização social do nosso momento histórico. Não é a toa que a tal da heterossexualidade é a norma hoje... A nossa organização social DEPENDE da existência da família hétero como núcleo mínimo da organização social, porque é nesse nucleozinho que a galera (principalmente as mulheres, na real) vai assumir a responsa de garantir coisas fundamentais pra produção e pra reprodução sem ganhar um centavo por isso. Porque “é assim que família é”. Isso significa que nem o governo e nem as empresas vão precisar gastar com isso também. Higiene, moradia, alimentação, roupas, lazer, saúde preventiva, cuidado de idosos, cuidado e educação das crianças, responsabilidade pela formação e estudos? A família cuida (foco na mãe). Manutenção da moradia? Família. Saúde emocional e afetiva? Família. Deu treta? Família. Esse modelo existe porque é útil e ele funciona melhor (pros parâmetros do sistema) quando é hétero.
Não é a toa, inclusive, que o pouquinho de “””inclusão””” que casais homo/bi conseguem é só pela reprodução desse modelo. “Elas são sapatão, mas tem uma família linda!”. “Eles são gays mas não são bagunça, querem casar e tudo!”. “Vocês tão juntas? Que lindo! E quando vão casar? Tão pensando em adotar?”.
NÃO É A NOSSA ORIENTAÇÃO SEXUAL QUE TÁ SENDO ACEITA. É uma condicional. A gente pode ser gente, desde que forme a tal da família.
Pra manter esse modelo, que é machista até a medula, você precisa de homens e mulheres. Homens com pinto e mulheres com buceta. Homens de pinto que gostem de mulheres de buceta, e mulheres de buceta que não digam não pros homens de pinto (nem abortem). O sistema cria a gente desde que a gente nasce pra corresponder a esses papéis, porque ele precisa da gente assim, arrumadinha e de acordo.
A treta é que a gente não é uma massa de carne, que fica ali só recebendo os estímulos sociais e assimilando. A gente reage, responde e vai se construindo nesse ir e vir entre indivíduo e social na construção das identidades. Além das determinações que dão pra gente, a gente também aprende como o rolê inteiro funciona e encontra todo o tipo de referenciais pra assimilar – até os que a gente não deveria. Pra me ensinarem o que era ser homem, eu tive que aprender o que era ser mulher. Pra ensinar uma pessoa de buceta o que é ser mulher, ela teve que aprender o que é ser homem também. Pra gente entender por quem a gente podia ter tesão, a gente teve que entender por quem a gente não podia. Como certas ou como erradas, as referências tavam todas aí e a nossa identidade foi construída com base nelas. Nas “certas” e nas “erradas”, de acordo com o processo de cada pessoa. É nessa relação de “ir e vir” dialético entre o que mandam e como a gente responde, processo que NÃO É CONSCIENTE (então não tem escolha nessa rolê), que a gente se constrói. É assim que a gente vira homens mesmo com buceta, mulheres mesmo com pinto, travestis e seja mais o que for. E é também assim que as dinâmicas do nosso tesão são construídas.
E esse processo não acaba nunca, se a gente resolver não parar. Tesão e sexualidade são rolês sujeitos a expansão, também. É um campo em constante descoberta. Pegar a nossa sexualidade e trancar ela numa caixinha determinista de genes e inatismos é também uma violência sem tamanho e deveria ser tratada como tal.
Isso não significa que nossas genéticas não podem ter nenhuma influência sobre esse processo. Se pá até tem. Mas somos seres sociais, que se constroem em interação com o meio, e as categorias que a gente conhece (como as de orientação sexual) tão circunscritas a cada espaço e em cada momento histórico. Não é só a homossexualidade e as bissexualidades que são uma construção social e uma categoria circunscrita à nossa organização social: a heterossexualidade também é! Reconhecer isso, inclusive, nos dá a força e os argumentos pra jogar na cara desse povo quadrado que não há nada neles de “mais natural” do que em nós.
Ou a gente começa a superar esse papo de “nasci assim” e se dispõe a qualificar o debate, ou os debates de orientação sexual e identidade de gênero vão continuar caminhando pra lados opostos, talvez pro irreconciliável.

por Amanda Palha 
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