Nos arredores da
pacata cidade britânica de Salisbury, a 135 quilômetros de Londres, um
megacomplexo de antigos prédios de tijolos aparentes se tornou, em
apenas uma década, o principal quartel-general de desenvolvimento
científico e de inteligência militar da Europa. O local, chamado de
Porton Down Science Park, abriga os maiores centros privados de
pesquisas médicas do país e a sede do Defence Science and Tecnology
Laboratory, o cérebro do Ministério da Defesa para pesquisas químicas,
biológicas e nucleares do Reino Unido.
Na
quarta-feira 14, o bloco SP4, sede da GW Pharmaceuticals, dona de um
faturamento de US$ 50 milhões no ano passado, estava em clima de festa.
No fim da tarde, o presidente da companhia, Justin Gover, repassou aos
seus cientistas a notícia de que a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) havia retirado o canabidiol – um dos 80 princípios
ativos encontrados na cannabis sativa, a maconha – da lista de
substâncias de uso proibido no Brasil. A medida foi aprovada por
unanimidade pela diretoria colegiada da agência, durante reunião em
Brasília.
“Uma
decisão histórica”, celebrou o executivo. A euforia se explica. A GW
Pharmaceuticals, em parceria com o laboratório francês Ipsen e com o
espanhol Almirall, é o maior distribuidor de medicamentos à base de
canabidiol no mundo, um mercado ainda embrionário, mas que já movimenta
US$ 3 bilhões por ano, pelos cálculos da consultoria americana IMS
Health. Como o Brasil ocupa a sexta posição do ranking global de
medicamentos, com receita de R$ 60 bilhões no ano passado, o sinal verde
da Anvisa representa um passo importante para a popularização da
substância na América Latina e entre os países emergentes.
“Aplaudimos
essa inédita decisão da Anvisa”, afirmou Nelson Mussolini, presidente
do Sindusfarma, sindicato que representa 190 empresas farmacêuticas no
País, responsável por 90% do mercado nacional. “A liberação do
canabidiol criará uma nova divisão de negócios para a indústria e trará
novas possibilidades de tratamento à população.” A decisão, de fato,
deve estimular os investimentos em pesquisas por parte dos laboratórios
em operação no Brasil. Embora eles ainda não tenham divulgado seus
planos em relação ao canabidiol no País, sabe-se que há uma gigantesca
oportunidade no horizonte para o desenvolvimento de novos medicamentos.
As
substâncias encontradas na maconha têm apresentado resultados
surpreendentes nos tratamentos de diversas enfermidades, especialmente a
epilepsia infantil, a esquizofrenia e doenças que causam convulsões.
Pacientes que estão em fase terminal de câncer ou Aids também se
beneficiam dos poderes analgésicos da substância. “Para as pessoas que
têm quadros graves e que precisam dessa medicação, vai facilitar muito. O
médico vai se sentir mais à vontade por não ser uma droga proibida”,
afirma o professor de psiquiatria da USP de Ribeirão Preto, Antônio
Zuardi.
Desde
o ano passado, em vários países da América Latina – entre eles
Colômbia, Argentina, Venezuela, Chile e Peru – o canabidiol e o
tetraidrocanabidiol (THC) já são vendidos pela Ipsen sob o nome de
Sativex, um spray receitado para aliviar as dores e contrações
musculares ocasionadas pela esclerose múltipla e pelo câncer. A Ipsen,
por meio de nota, informou que prefere não compartilhar mais detalhes
sobre o produto para evitar a promoção de um medicamento que,
oficialmente, ainda não está aprovado. Outras aplicações da maconha, no
entanto, estão em estudo em diversas partes do mundo.
Em
vários países onde a erva deixou de ser socialmente demonizada graças
aos benefícios terapêuticos, o uso recreativo passou a ser tolerado. Um
estudo publicado pela revista Journal of Psycopharmacology, da
Associação Britânica de Farmacologia, mostra que pesquisadores de Israel
e da Espanha identificaram o canabidiol como uma droga eficaz contra a
perda de memória provocada pela doença de Alzheimer. A mesma publicação
destacou um estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, que
apontou a substância como aliada de pacientes com Parkinson.
“Agora
que está liberado, os laboratórios interessados em investir nesses
medicamentos deverão levar cerca de um ano para iniciar uma eventual
produção local”, disse Mussolini, do Sindusfarma. Os laboratórios que
decidirem disputar uma ponta do mercado do canabidiol deverão, mesmo
após a liberação, obter um registro especial na Anvisa. A matéria-prima
para elaboração dos medicamentos deverá, por enquanto, ser importada. O
cultivo da maconha continua expressamente proibido no País. A indústria
do tabaco, que poderia ser um fornecedor seguro de insumo para os
laboratórios, ainda não demonstra intenção de entrar nesse mercado.
“A
Souza Cruz não tem interesse em participar do mercado de maconha, ainda
que o uso da espécie cannabis sativa e suas subespécies e variedades
sejam permitidas no Brasil”, afirmou, em nota, a maior fabricante de
cigarros do País. “A negativa se estende à utilização dos alcaloides
derivados dessas espécies, tais como o tetraidrocanabinol (THC) ou o
canabidiol (CBD).” No varejo, a aquisição do produto deverá ocorrer de
forma controlada, com a exigência de receita médica de duas vias, o que
inibirá o avanço do consumo para outras finalidades.
O
presidente da Anvisa, Jaime Oliveira, afirmou que a reclassificação do
canabidiol não representa a flexibilização do uso da maconha no Brasil
para consumo recreativo, um mercado que movimentará cerca de US$ 35
bilhões, em 2020, somente nos Estados Unidos, inclusive com a utilização
de aplicativos para tablets e smartphones. “A gente colocou dentro dos
trilhos do debate técnico e científico um assunto que, muitas vezes, vem
contaminado por outras questões dentro da sociedade”, afirmou Oliveira.
“Esse assunto não pode ser extrapolado para outras discussões em
relação ao uso da cannabis.”
Inevitavelmente,
os debates em relação à liberação da maconha no País ganharão mais
fôlego a partir de agora e a pressão sobre a Anvisa, com o objetivo de
liberar outras substâncias ainda proibidas, tende a crescer. Para o
diretor de pesquisas do laboratório americano Amgen no País, Marcelo
Vianna de Lima, a carta branca para a utilização do canabidiol marca uma
mudança de postura do governo em relação às demandas do mercado médico
brasileiro. “A Anvisa é reativa e não proativa”, diz o executivo.
“Existe um arsenal de medicamentos limitados pela agência que ainda
precisa ser reavaliado”, afirma Vianna de Lima.
Colaboraram: Carlos Eduardo Valim, Luciele Velluto e Rodrigo Caetano
via Hempadão
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