NUNCA ANTES





No penúltimo dia de 2014 e de seu primeiro mandato, a senhora Rousseff desferiu o mais duro ataque legislativo já ocorrido no Brasil contra as classes trabalhadoras. Com as medidas provisórias 664 e 665, impuseram-se restrições drásticas ao exercício de direitos existentes há 40, 50 ou 80 anos casos do PIS-PASEP, seguro-desemprego e pensão por morte, respectivamente. No mesmo dia, a gerenta vetou uma lei que determinava a estipulação anual de uma linha de pobreza baseada numa cesta de bens e serviços. Na véspera, decretara um salário mínimo de R$ 788 para 2015.
O conteúdo das MPs 664 e 665 é tão violento que é provável sua modificação ou derrubada no Congresso, por onde precisam passar para se tornarem leis (sem isso, podem vigorar, no máximo, por 120 dias). De qualquer modo, é importante examiná-las a fundo, pois elas constituem a ata de ruptura definitiva do PT com a parcela (grande) da população trabalhadora que ainda podia ter com ele alguma ilusão. Não se trata de mero estelionato eleitoral ou de outro tipo , mas de declaração de guerra.

Pensão por morte




O direito à pensão depende, agora, de no mínimo dois anos de contribuição previdenciária e, para a(o)s viúva(o)s, dois de casamento (formal ou não). Antes, desde 1991, bastava que o trabalhador tivesse vínculo com o INSS ao morrer.
Essas exigências deixarão milhões de viúvas e órfãos no desamparo. Primeiro, porque o Brasil é um país com elevado número de mortes por causas como assassinatos (inclusive os cometidos pelo Estado e suas forças policiais) e acidentes de trânsito. Segundo, porque acumular dois anos de contribuição previdenciária num país com altos índices de trabalho sem registro em carteira e rotatividade no emprego é – sobretudo para os jovens – mais difícil que pode parecer.
O pior, porém, é que a pensão deixa de ser vitalícia quando o IBGE indicar que a(o) viúva(o) tem mais de 35 anos de vida pela frente. Se a sobrevivência estimada for maior que 55 anos o que, hoje, ocorre com quem tem até 21 anos de idade , a pensão será paga por três anos, apenas; se estiver entre 50 e 55 (pessoas com idade entre 22 e 27 anos), por seis anos; entre 45 e 50 (viúvas com 28 a 32 anos), por nove; de 40 a 45 (quem tiver de 33 a 38 anos de idade), por doze; e com 35 a 40 anos de sobrevida estimada (hoje, 39 a 43 anos de idade), quinze anos. Pensão vitalícia, só se a(o) viúva(o) tiver mais de 44 anos no dia da morte do(a) trabalhador(a). A exemplo do que ocorre com o famigerado fator previdenciário, essas idades subirão ano a ano com o aumento da expectativa de vida calculada pelo IBGE. E em vez de receber o equivalente à aposentadoria do marido (ou esposa), a(o) viúva(o) receberá 60% desse valor, mais 10% por filho.
O pretexto para tudo isso é o crescimento da participação feminina na força de trabalho. Viúvas jovens deveriam trabalhar e não precisam de pensão previdenciária diz o governo. Um progresso do século 20 é usado para promover um retorno ao 19 em pleno 21, num raciocínio similar ao que visa reduzir direitos dos idosos aumentando a idade de aposentadoria sob a alegação de que a qualidade de vida deles melhorou, ou ao que se usa para diminuir a proteção aos adolescentes suprimindo a presunção legal de violência em relações sexuais com menores de 14 anos, reduzindo a maioridade penal e reabilitando o trabalho infantil tudo sob a alegação de que seriam mais maduros, hoje, do que anos atrás.
Se as mulheres trabalham e dividem com o homem o sustento da casa, isso não é motivo para cortar-lhes direitos, mas para estender ao marido o direito à pensão pela morte da esposa, como se fez na Constituição de 1988, ou para garantir a ambos a licença para acompanhamento de familiar doente (que existe no serviço público, mas não no INSS), já que é cada vez mais rara a casa com uma esposa e mãe em condições de atuar como cuidadora não-remunerada. Adaptar o sistema previdenciário às novas (ou não tão novas) configurações familiares significaria ampliar direitos, e não destruí-los.
Viúva(o)s jovens têm tanta necessidade de amparo previdenciário quanto a(o)s mais velha(o)s, embora por razões distintas. É maior para um casal jovem do que para um idoso a probabilidade de que precise pagar prestações da casa própria e os financiamentos habitacionais duram em regra 30 anos, e não 3. Se o marido (ou esposa) morre, restará à(o) viúva(o) vender com prejuízo o apartamento de dois quartos que recém haviam começado a pagar e ir morar numa quitinete talvez com dois ou três filhos...
A existência de crianças ou adolescentes também típica de casais jovens ou de meia idade faz com que, frequentemente, o gasto familiar aumente em vez de diminuir quando um dos pais morre. Não tendo mais o(a) companheiro(a) com quem se revezava para cuidar da prole, a(o) viúva(o) precisará reorganizar a vida, abrindo mão de afazeres profissionais e de dinheiro, quando possível. Não podendo parar de trabalhar ou diminuir a carga, precisará remunerar alguém para levar e buscar crianças na escola e tomar conta delas.

Auxílio-doença

O auxílio-doença tem seu valor limitado à média dos salários sobre as quais o trabalhador contribuiu no ano anterior a seu recebimento, trazendo perdas significativas a muitos. O aspecto mais brutal das alterações introduzidas neste benefício, porém, é outro.
Desde sempre, a remuneração dos primeiros quinze dias de afastamento por razões de saúde coube ao empregador e a do tempo excedente ao INSS. O período a cargo das empresas passa, agora, para 30 dias.
À primeira vista, isso pareceria indiferente para o trabalhador e prejudicial apenas aos empresários. Na verdade, é um ataque tanto a quem emprega quanto a quem trabalha.
O impacto financeiro dessa alteração é significativo para quem tem dois, três ou dez empregados. Empresas maiores sobretudo transnacionais de países imperialistas e bancos , por disporem de automação e de um volume maior de capital, não sentirão nem cócegas.
Se, ainda assim, alguma empresa de maior porte por exemplo, algum frigorífico goiano com grande incidência de afastamentos por doença promovido a monopólio pelo BNDES se sentir incomodada, poderá valer-se de uma possibilidade aberta pela MP 664: a de decidir, ela própria, se o trabalhador está ou não doente e se tem ou não direito à licença. A MP dá às empresas que disponham de serviço médico próprio (algo só ao alcance das grandes) o poder de realizar perícias e determinar a duração do afastamento.
Não há, portanto, oneração dos empregadores, a não ser dos pequenos. Com os que têm tamanho suficiente para dispor de corpo médico próprio, o governo, na verdade, associou-se para economizarem juntos às custas de trabalhadores doentes ou acidentados.
Ao fazer isso, contraria uma razão de existir da Previdência Social, que é assegurar ao trabalhador que a aferição de seu direito não dependa de um médico escolhido e pago pelo patrão. Para isso é que cada empregado entrega ao INSS um salário por ano (resultado da multiplicação dos descontos de 8 a 11% por doze meses). Se os peritos do INSS comportam-se como burocratas, e não como médicos; se, sobretudo em municípios menores, é comum que sejam também assalariados das empresas; e se, em última análise, o Estado brasileiro não é o que diz ser, são problemas que precisam ser denunciados e enfrentados. Delegar as perícias aos empregadores que podem pagar por elas só irá agravá-los.

Seguro-desemprego

O esvaziamento deste direito começa atingindo uma das mais interessantes experiências da Seguridade Social brasileira: seu pagamento aos pescadores artesanais durante o período anual de proibição da atividade (defeso). Instituída em 1991, essa garantia contribui muito para a preservação das bases físicas e econômica da sobrevivência desses trabalhadores. De um lado, ao menos parte de seu sustento quando não podem pescar é assegurada, poupando-os de deixar seus locais de moradia e trabalho e converterem-se em trabalhadores itinerantes ou subempregados. De outro e também por diminuir a pressão da necessidade   assegura um maior respeito ao defeso, preservando os peixes e garantindo a pesca no ano seguinte.
A MP 665 restaura uma carência de três anos para o início do recebimento do seguro, que havia sido abolida em 2003 e impõe obstáculos burocráticos diversos à comprovação do direito. O maior deles é a exigência de comprovação de pagamento ao INSS em todos os meses desde o último defeso o que, face ao caráter informal da atividade e à recusa de vários compradores de pescado a emitir nota de compra, será impossível para muitos.
Trata-se de um ataque frontal a uma categoria que vem travando embates dramáticos em defesa de seus meios de vida contra ações megalomaníacas resultantes da associação entre Estado e monopólios, como o Comperj e a Companhia Siderúrgica do Atlântico.
A outra vertente atinge todos os trabalhadores que perdem o emprego do qual viviam. O seguro-desemprego brasileiro tem, de fato, problemas: encontram-se pendentes na Organização Internacional do Trabalho (OIT) questionamentos de sua Comissão de Especialistas em Aplicação de Convenções e Recomendações ao Estado brasileiro sobre 19 (dezenove) situações de descumprimento ou informação truncada sobre as convenções 102 (norma mínima de Seguridade Social) e 168 (proteção contra o desemprego).
A MP 665, porém, não corrige, e sim agrava a desproteção aos desempregados. Para receber o seguro, era preciso, até então, ter trabalhado com carteira assinada nos seis meses imediatamente anteriores ao início do pagamento. Agora, exige-se, na primeira solicitação da vida do trabalhador, emprego com registro em carteira em pelo menos 18 dos 24 meses imediatamente anteriores ao pedido. Na segunda, o requisito é de pelo menos 12 meses com carteira assinada nos últimos 16. Da terceira em diante, mantém-se a regra antiga.
Segundo o Anuário Estatístico da Previdência Social (AEPS), 53,4 milhões de brasileiros contribuíram ao INSS como empregados em algum momento de 2013. Devido ao alto índice de demissões, porém, só 25,5 milhões (menos da metade) conseguiram fazê-lo nos doze meses do ano, e só 34 milhões por nove meses ou mais. Os requisitos impostos na MP 665 serão, portanto, impossíveis de atender para algo como metade dos trabalhadores com registro — que, por sua vez, equivalem a “apenas” dois terços do total de empregados segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do IBGE. Dois em cada três brasileiros que trabalham por conta alheia estão, assim, excluídos do seguro-desemprego.

Abono do PIS

Um alívio contra a curta duração dos empregos era dado, nos últimos 40 anos, pelo abono do Programa de Integração Social (PIS), que pagava um salário mínimo anual a quem tivesse trabalhado, no ano anterior, por pelo menos trinta dias, com média salarial (soma dos salários dividida por doze) inferior a dois salários mínimos.
A MP 665 aumenta o tempo mínimo de emprego registrado no ano anterior para 180 dias – o que, segundo o AEPS, deixa de fora 11,5 milhões de brasileiros que teriam, até então, direito ao abono. Para os outros 16,5 milhões, este cai de um salário mínimo para uma fração calculada sobre o número de meses trabalhados com registro em carteira.




Salário mínimo e linha de pobreza

O salário mínimo teve seu valor modificado, em 29/12 e com vigência a partir do primeiro dia de 2015, de R$ 724 para R$ 788 (reajuste de 8,6%). Ainda que se aceite a inflação medida pelo IBGE, a senhora Rousseff tem seu nome gravado na história do Brasil como responsável pelo menor reajuste real médio desse valor por período presidencial (3,9% ao ano), melhor apenas que Dutra e Castelo Branco e pior, inclusive, que Fernando Henrique Cardoso.
Esse número, porém, refere-se ao salário mínimo em sentido estrito, ou seja, à remuneração mínima que o empregador pode pagar. Se considerada a remuneração integral devida nessa faixa remuneratória que inclui o salário-família, custeado pela Previdência o retrospecto é ainda pior. Como a família-padrão brasileira tem dois filhos, o reajuste médio do salário mínimo familiar (salário mínimo em sentido estrito + dois salários-família) até 2015, tomando por base 2011, é de 2,7%. Seu valor atual (R$ 840,52) mal supera um quarto dos R$ 3 mil (ou, considerando que pai e mãe o recebam, R$ 1,5 mil) calculados pelo chapa-branca Dieese como necessários à sobrevivência física de uma família.
Isso ajuda a entender porque a senhora Rousseff vetou integralmente, um dia depois desse reajuste, uma lei aprovada pelo Congresso Nacional após 24 anos de esforço diário do sainte Eduardo Suplicy, um dos dois ou três reformistas sinceros ainda filiados ao PT e, exatamente por essa honestidade, virtualmente expulso da legenda. O projeto impunha ao Estado a obrigação de estipular, anualmente, com base numa cesta de bens e serviços, a linha de renda abaixo da qual as necessidades básicas de uma pessoa ou família deveriam ser oficialmente consideradas como não-satisfeitas. A crença na eficácia dessa “linha mágica” é passível de críticas diversas, mas nenhuma delas torna aceitáveis o veto nem sua justificativa: a de que essa lei interferiria na política de salário mínimo ou seja, desnudaria uma das farsas mais caras ao PT e ao governo, a de seus fabulosos “aumentos reais”.

Epílogo

O governo da senhora Rousseff diferentemente do de seu antecessor, que, mais hábil politicamente, teve também a sorte de mover-se num cenário mais favorável nunca permitiu dúvidas sobre seu caráter antipopular, antinacional e repressivo. Ainda assim, medidas de tamanha brutalidade concentradas em tão curto espaço de tempo são chocantes. Nunca antes na história do Brasil os trabalhadores perderam tanto num único dia.
O PT conseguiu manter-se no governo durante três mandatos (não há garantia de que o quarto se completará) devido, em boa parte, à formalização de vínculos de emprego verificada no octênio de Luiz Inácio: de um total anual de 45 milhões de contribuintes e uma média mensal de 32,5 milhões em 2005, passou-se a um total de 69,7 e uma média de 52,5 milhões em 2013. Os ataques à Seguridade Social são justificados, nas exposições de motivos das Mps 664 e 665, pelo aumento do número de pessoas que, por causa disso, tiveram acesso aos direitos agora destroçados. O governo está dizendo, em suma, que os trabalhadores brasileiros têm direito a um emprego com carteira assinada, desde que não pretendam exercer nenhum dos demais direitos decorrentes dessa condição.
A senhora Rousseff começou seu mandato entregando a previdência do serviço público estatutário à especulação financeira via Funpresp. Termina-o destruindo a dos trabalhadores comuns e mais pobres, sujeitos ao INSS. Ninguém sabe como se traduzirá politicamente a ira popular que essas medidas merecem. O que se sabe é que ela não tardará a se manifestar.

Fonte: A Nova Democracia  
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