Por Wilson Gomes
Levítico é um dos meus livros preferidos da Bíblia. Não exatamente por
ser um tratado sobre a ternura entre os seres humanos ou sobre um Deus
amoroso, que disso nele nem vestígio há. Gosto é da experiência
etnográfica que esse livro proporciona, porque nele estão fixados e
expostos, sem disfarces, filtros ou peias, as mentalidades, o sistema
moral e legal de um povo antigo e do modo como conecta tudo isso com a
sua experiência religiosa. O retrato não é bonito, longe disso, mas é
muito interessante.
Em tempo: é Levítico o livro que provê a “autorização bíblica” mais
recorrente para a homofobia evangélica. Os católicos não curtem muito
esse livro, usado contra eles pelo proselitismo dos evangélicos
populares há muitas décadas, principalmente por causa da proibição de
imagens. Na verdade, é um livro judaico por excelência e as referências
são exclusivas para “os israelitas”, mas os evangélicos adoram se sentir
parte de passado nobre e remoto e entendem que, mediante algum hocus pocus cujo
sentido me escapa, ganharam como herança o direito de se incluir entre
os israelitas do Antigo Testamento. O livro é simplesmente o código
sacerdotal e teocrático da comunidade política de Israel (parte do
conjunto legal do Pentateuco) e refere-se a uma experiência histórica
que terá acontecido lá por 1.200 a.C. (segundo uns) ou 1.400. Faz um
tempinho, né?
Como Levítico é base do argumento “a Bíblia condena”, deixem-me dizer
alguma coisa sobre esse livro, ainda que não dê para fazer isso de
maneira muito breve. Vejam aí se vocês gostariam, como querem os
evangélicos populares, que esse livro fosse a norma e o farol moral das
suas vidas.
Um livro ameaçador e sem concessões
Primeiro, o livro é uma lista de interdições sociais e morais,
atribuídas diretamente a Deus (ordem cósmica) e a Moisés (ordem
política) – “Disse Deus a Moisés…” está para os israelitas como o “a
Constituição diz” está para nós. Só que há mais ou menos 2.900 anos
antes que a civilização cogitasse distinguir entre comunidade religiosa
(o liame social estabelecido pela fé e pelos laços étnico-religiosos) e
comunidade política (ou Estado, em que o cimento social é dado pela
lei). E numa fase em que leis sobre pureza e impureza se misturam com
regras de higiene e normas sobre agricultura, tudo junto, misturado e
coordenado pela autoridade dos sacerdotes (levitas). É como se hoje
prescrições religiosas fossem ao mesmo tempo Código Penal, políticas
públicas e material ideológico para formar a ideia de povo. Puxado. Em
Levítico, violações leves das regras, todas descritas em detalhes, podem
ser purificadas com rituais (em geral, sacrifícios de animais e de
produtos agrícolas), e as graves são resolvidas com penas de morte
mesmo, que 3.400 anos atrás não estavam para brincadeira.
Segundo, é um livro duríssimo, ameaçador, sem concessões. O “Deus” que
empresta voz às prescrições é, por consequência, um sujeito assustador,
ciumento pra caramba (“te salvei do Egito, você é meu, mas vou te botar
na linha” é o mote) e ameaçador. Não tem a menor noção de direitos
humanos e misericórdia. Terceiro, não tem hierarquia nas regras, não,
vem tudo misturado – pecou, perdeu! Quarto, 98% das regras se aplicam a
homens. É um mundo masculino. Peca-se com mulheres, mas mulheres não
pecam. Fora a obsessão com menstruação, quase não se menciona punição a
mulheres.
É bom lembrar que esse Levítico que abomina “homens que se deitam com
homens como se fossem mulheres”, admite a escravidão numa boa, viu? Só
avisa que um israelita não pode escravizar outro. De resto, está
liberado. Lv 25, 44-46: “Vossos escravos, homens ou mulheres,
tomá-los-eis dentre as nações que vos cercam; delas comprareis os vossos
escravos, homens ou mulheres. Podereis também comprá-los dentre os
filhos dos estrangeiros que habitam no meio de vós, das suas famílias
que moram convosco dentre os filhos que eles tiverem gerado em vossa
terra: e serão vossa propriedade. Deixá-los-eis por herança a vossos
filhos depois de vós, para que os possuam plenamente como escravos
perpétuos. Mas, quanto a vossos irmãos, os israelitas, não dominareis
com rigor uns sobre os outros”. Não é certamente uma boa premissa para
um livro considerado tão santo e tão verdadeiro que dele não pode se
desviar uma vírgula quando se trata de condenar os homossexuais. Então,
não se enganem, meus amigos, o mesmo Levítico hoje usado para a
“condenação bíblica” dos homossexuais foi secularmente usado para a
“autorização bíblica” à escravidão dos não cristãos.
O santo livro também se ocupa imensamente de purezas e impurezas morais,
religiosas e físicas (não há qualquer distinção entre os níveis). Lv 11
estabelece os animais que podem ou não ser comidos. Não podem ser
comidos coelhos, lebres, porcos, peixes sem escama, assim como avestruz,
cisne, cegonha, garça, morcegos (viu, Ozzy?), toupeira, rã e camaleão.
Réptil de nenhuma espécie, “uma coisa abominável” (Lv 11,41). Banha de
porco e toucinho, mesmo de gado, torna você impuro também (Lv 7, 22-23).
Sarapatel, chouriço, molho pardo ou qualquer coisa que leve sangue são,
literalmente, pecado (Lv 7,26; 17,11). Aposto que Feliciano e Marisa
Lobo nunca tocaram num torresminho ou costeleta. Porque basta encostar
em um desses animais proibidos, vivos ou mortos, no todo ou em parte, e
você fica automaticamente impuro. Para ficar puro de novo só
sacrificando algum bicho ritualmente. Se uma linguicinha que seja cair
no fogão, tem que destruir o fogão (Lv 11,35).
Sabe o que mais é impureza total segundo o livro santo e verdadeiro?
Mulheres que deram à luz. Sim, senhoras. Mas o nível de impureza varia,
viu. Se o bebê for homem, a mulher fica impura por sete dias; se for uma
menininha, por duas semanas (Lv 12, 2, 4-6). Entenderam a sutileza da
dosimetria? E só passado o tempo em que é “imunda” (sorry, it’s the Bible!)
é que poderia matar algum bicho “em sacrifício pelo pecado”. Pecado,
sim, senhora, tá pensando o quê? E sabe quando mais as mulheres são
impuras? Acertou quem pensou “todo mês”. Menstruou, pecou (Lv 15,19) –
impura por sete dias, viu? Se alguém tocar nela (não é transar, não, é
só encostar a mão mesmo) naqueles dias, fica impuro até o fim do dia; se
uma mulher menstruada sentar em algum lugar, o lugar fica impuro (Lv
15,24). Se algum parceiro na secura transar com ela nesse período, pega
sete dias de gancho de impureza também, que é para aprender a não mexer
com impuras.
A parte sobre homossexualidade vem no meu capítulo favorito, Lv 18, que é
todo para garantir que os israelitas não copiem os costumes dos
egípcios, de onde fugiram, nem dos cananeus, cujas terras eles
invadiram, numa boa, “porque Deus mandou”. Por isso, a lista é
aleatória, acho que alguém foi vendo do que não gostava nos costumes dos
outros povos e saiu proibindo tudo.
O versículo 20 diz que os homens não devem ter relações sexuais com a
mulher dos outros. Notem, contudo, que no século 14 a.C. não há norma
sobre o comportamento sexual das mulheres, exceto uma regra que proíbe
que copulem com bichos. Além disso, como veremos adiante, um homem
transar com uma escrava é, digamos assim, uma contravenção, e não um
crime. Parece, portanto, que o problema consiste no fato de a mulher ser
“dos outros”.
Moloc e os moleques
Prestem atenção agora a três versículos seguidos de Lv 18. Lv 18,21 diz:
“Não darás nenhum dos teus filhos para ser sacrificado a Moloc”. Ok, eu
gosto dos meus filhos e não conheço nenhum Moloc, então, nada de
sacrificar um deles. Sim, meus pagãos, Moloc deve ter sido um deus, e
nesta época a Bíblia admitia haver outros deuses, o que distinguia o dos
israelitas é que era exclusivo daquele povo. O único requerimento do
deus particular do antigo povo de Israel era que, já que ele foi legal e
os retirou do Egito, fosse considerado o maior de todos (Ex 20, 3: “Não
terás outros deuses diante de mim”). Lv 18,22 salta bruscamente da
competição com Moloc para “Não te deitarás com um homem, como se fosse
mulher: isso é uma abominação”. Estão no mesmo nível: nada de degolar o
meu moleque para agradar a Moloc e nada de ser passivo numa transa gay –
a pena, inclusive, é a mesma. Com a mesma incompreensível coerência, Lv
18,23 proíbe que homens transem com animais. E, pela primeira vez, acha
que é melhor estender a interdição também às mulheres. A galera por lá
devia andar a perigo, não é? “Uma mulher não se prostituirá a um animal:
isso é uma abominação.”
Aliás, há apenas quatro pecados “só para mulheres” em Levítico: parir,
menstruar, transar com animais e fazer adivinhações. Faz sentido para
vocês, meninas? As lésbicas, entretanto, tiveram algum lucro, já que não
há qualquer interdição que mulheres se deitem com mulheres. Que tempos!
Adoro as listas supercoerentes de Levítico: parir no mesmo nível que
copular, sacrificar o filho é praticamente o mesmo que sexo entre
homens.
O Antigo Testamento hebraico não tem uma palavra para “homossexualidade”
ou “homossexualismo” – a preocupação é com o comportamento. Não se pode
transar com parentes, não se pode transar com bicho (nem as mulheres
podem, está confirmado), não se pode transar com a mulher de outro homem
e não se pode transar com outro homem “como se fosse mulher” (em Canaã a
preocupação era só com o sexo homossexual passivo, viu meninos?).
Depois de cuidar do sexo, no capítulo 18, Levítico dá regras sobre
agricultura (não se pode misturar dois cereais diferentes no mesmo
campo) e dispara mais um monte de mandamentos no capítulo 19, dentre os
quais dois dos meus prediletos: a proibição de xingar surdos (v. 14) e a
de dar rasteira em cegos. Isso me parece aquelas proibições que se leem
por aí em locais públicos, como a de urinar no chão do banheiro ou de
cuspir no metrô. Como ninguém proíbe o que as pessoas naturalmente não
fariam, derrubar ceguinhos e dizer palavrões a surdos devem ter sido
duas das diversões locais no século 14 a.C. O meu terceiro mandamento
predileto está em Lv 19,27: “Não cortareis o cabelo em redondo, nem
rapareis a barba pelos lados”. Se eu fosse Moisés, completaria com um
mandamento só para mulheres “Não abusareis do animal print nem vos
enfeitareis com mais de cinco acessórios dourados ao mesmo tempo”. Cada
um com seu gosto: Moisés curtia um barbão, eu não curto peles de
répteis.
Acho particularmente interessante o Lv 19,20, especificamente sobre sexo
com escravas. Notem que se o cara for para a cama com a mulher de
alguém, tem que morrer, ele e a mulher. Pois bem, “se um homem se deitar
com uma mulher escrava desposada com outro, mas não resgatada nem posta
em liberdade, serão ambos castigados, mas não morrerão, porque ela não
era livre”. Basta oferecer um carneiro como “sacrifício de reparação” e
está liberado. Alegrem-se, meninos: é só controlar quantos carneiros
ainda se tem no pasto e se jogar na fornicação; só não se pode fazer com
a mulher que pertence a outro homem. É a origem do “lavou [com sangue de cordeiro], tá novo”.
Na lista do proibidão ainda tem: usar roupas tecidas com duas espécies
de fio, comer os frutos das três primeiras colheitas da sua roça (a
agroindústria deve praticar muito isso em Israel hoje) e fazer tatuagens
com figuras (“Wilsão, amor para sempre” está superliberado).
No capítulo 20, o santo livro que os homofobíblias querem que substitua o
nosso Código Penal trata das penas pela violação das interdições.
Sacrificar filhos a Moloc (acho um nome digno para um deus), amaldiçoar
pai e mãe, fazer adivinhações, transar com mulher casada, madrasta,
nora, ou outro homem “como se fosse mulher” (v. 13), com sua mãe ou sua
filha, ou com bicho, tudo isso se paga com a morte. Incesto, adultério
masculino, sexo homossexual masculino, práticas divinatórias, zoofilia e
amaldiçoar os pais estão todos no nível máximo da transgressão. E há
penas de excomunhão, como no caso de se transar com uma mulher
menstruada, comer sangue de animais (Lv 17), fazer sacrifícios fora do
templo. No capítulo 21 tem uma dessas penas adoráveis da lei mosaica (Lv
21, 9): se a filha de um sacerdote tiver relação sexual sem ser casada
“será queimada no fogo”. Nice and sweet! Em Lv 24, 17-20 se
apresenta, enfim, toda a doçura da Lei do Talião, a que manda cobrar
olho por olho e dente por dente. Tão levítico!
Excomunhão e pena de morte são para os indivíduos, mas se essas doces
leis não forem aplicadas, o deus de Levítico manda dizer que vai detonar
geral. E o diz sem palavras suaves nem misericordiosas no final do
livro (Lv 27): mandará doenças, soltará feras “que devorarão vossos
filhos” (v. 22) e animais de criação, lançará a peste, entregará o povo
aos seus inimigos, destruirá as cidades e, por fim, “comereis a carne
dos vossos filhos e filhas” (v. 29). Canibalismo total no horizonte.
Não se pode fazer uma moral seletiva
Eis o espírito da “Bíblia que condena os homossexuais”. Quando alguém me
diz que organiza todo o seu julgamento moral sobre a homossexualidade a
partir de Levítico eu só consigo pensar que ele nunca leu ou entendeu
Levítico ou não tem a menor ideia do que seria organizar sua vida e a
experiência social por esse livro. Ao pé da letra, Levítico é arcaico,
anacrônico, cruel. Muito cruel. Como alguém pode sequer imaginar que uma
sociedade de 3.400 anos atrás poderia prover a norma moral e legal para
sociedades democráticas do século 21 é algo que me escapa ao
entendimento. E como se pode sequer suspeitar que um livro escrito por
sacerdotes e para justificar o domínio social dos sacerdotes
(claramente, o livro é feito para colocar a tribo de Aarão no topo do
poder político) possa ser base moral, intelectual e legal para
sociedades laicas, baseadas no conhecimento científico, na tolerância
moral, no Estado de Direito, na ideia de direitos humanos e no princípio
da igualdade entre todas as pessoas?
E, se alguém diz que o livro deve ser seguido ipsis litteris porque
é fruto da revelação de Deus, eu só consigo pensar que essa pessoa não
tem a menor ideia do que possa teologicamente significar “revelação”.
Uma pessoa dessas só pode ter uma concepção infantil da fé, segundo a
qual um deus que tem semelhança aos homens teria ditado, palavra a
palavra, e já em sua forma final, cada letra dos livros sagrados do
judeo-cristianismo. Uma compreensão dessas está para a teologia como a
crença em dragões e unicórnios está para o universo científico.
De qualquer modo, o teste definitivo a que devem ser submetidos os que
querem fazer de Levítico a régua e o compasso para a sua decisão moral
(e a dos outros) é exigir-lhes coerência. Primeiro, não se pode fazer
uma moral seletiva: não há razão aceitável para dizer que vale a regra
da “abominação homossexual” e não a outra centena de regras que abominam
milhares de comportamentos humanos, práticas, pessoas e coisas,
inclusive os tabus alimentares. Segundo, não se pode ficar só com as
proibições, então temos que assumir todo o quadro moral: passaremos os
dias fazendo sacrifícios rituais pelos nossos pecados matando ovelhas e
cordeiros nos altares das cidades? Faremos excursões aos povos vizinhos
para adquirir escravos e escravas (sexo à vista!) que passaremos aos
nossos filhos como propriedade? Toda a tarde reuniremos os adúlteros da
cidade para um ritual coletivo de apedrejamento básico? Alguns dias por
mês não faremos um carinho sequer nas nossas filhas e não tocaremos
sequer as roupas das nossas mulheres para evitar que fiquemos impuros
com a sua imundície moral? Proibiremos o abate de porcos e o uso de
gordura animal de qualquer espécie? Uma vez ou outra, tocaremos fogo em
alguma mulher para honrar a Lei do Senhor?
Porque é lícito exigir que se alguém escolhe Levítico como regra moral
para decidir o que é certo e errado para os outros, tem que assumi-lo
por inteiro para si e viver segundo as suas normas. Mas, não:
principalmente essas pessoas, em geral, não aceitam examinar
racionalmente a norma moral que eles depreendem desse livro. Não seriam
anacrônicas e excessivamente relacionadas a mentalidades que, depois,
foram superadas? Será que o propósito do livro, na verdade, não era
garantir a fecundidade, e não há razão hoje para mantermos a norma X,
uma vez que a norma Y e Z claramente não podem ser aplicadas? Essas
perguntas, que caberiam num universo moral conduzido pela razão, são, em
geral, recusadas dogmaticamente. Então, só resta a solução contrária:
quem crê na norma X de Levítico tem que viver todo Levítico. Aí, eu
quero ver. Levítico no dos outros é leite e mel, agora tente aplicá-lo a
si e depois me conte.
Na verdade, gente que diz “sigo a Bíblia”, antes de cuspir uma
condenação à orientação homossexual, faz mais mal à religião do que aos
homossexuais. Afinal, se leitores e seguidores da Bíblia não forem
moralmente superiores aos do Mein Kampf, mais vale que leiam o
livro de Hitler, já que é mais curto. Se os filhos da luz forem mais
preconceituosos e malvados e tiverem o coração mais impermeável (que é a
definição de “impiedade”) do que os filhos das trevas, melhor seria
sair com os segundos, sabidamente mais espertos e mais divertidos. Da
minha parte, nunca consegui identificar um único artigo da fé cristã
violado pela admissão da homossexualidade como parte da natureza humana.
Na verdade, a homofobia de base religiosa parece-me menos um ato de fé
do que uma via reta para a impiedade.
Wilson Gomes é professor titular da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.
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