Hitchens afirma que Jesus supera Deus em crueldade
O
Novo Testamento, o do Deus pai de Jesus, costuma ser citado por
cristãos conscienciosos como uma espécie de upgrade, com menos bugs, do
Velho Testamento, onde está o Deus mesquinho, cruel e insano. Para
Christopher Hitchens (foto abaixo), contudo, o Novo Testamento é mais
terrível que o Velho.
No
Velho Testamento, argumenta Hitchens, há o mandado divino para o
extermino de povos, o que hoje é chamado de limpeza étnica. A morte,
nesse caso, é o castigo derradeiro de Deus a povos como os midianistas e
amalecitas. No Novo Testamento, contudo, o castigo aos ímpios não se
finda com a morte e prossegue no inferno por toda a eternidade.
Para Hitchens, essa ideia, a mais cruel de todas já feitas, nasceu com Jesus.
"Ele
[Jesus] disse pela primeira vez: “Se você não concorda com o que
ofereço, saia daqui e vá para o fogo eterno", disse Hitchens em novembro
de 2007 em uma entrevista a Elizateh Carvalho para o programa Milênio,
da Globo News. Foi quanto o britânico radicado nos Estados Unidos esteve
no Brasil para o lançamento do seu livro “Deus não é grande – como a
religião envenena tudo” (Ediouro, 304 págs.).
Nesta
entrevista, há um pouco da perspicácia e contundência da critica às
religiões do ateu mais brilhante e polêmico da contemporaneidade que
morreu aos 62 anos no dia 15 deste mês vítima de um câncer no esôfago.
Christopher Hitchens esteve no Brasil em 2007
Íntegra da entrevista
Christopher,
vamos acompanhar um pouco a cronologia do seu livro e voltar a Dartwood
na Inglaterra, onde você era um menino de 9 anos e tinha aulas de
religião com a sra. Jean Watts. Ela parece ter sido a primeira pessoa a
ajudá-lo sem querer a duvidar da existência de Deus. Acho que todos
passam por uma experiência parecida como essa em algum momento da vida.
Mas a verdade é que, independentemente do quão seja dogmática e
irracional a religião, bilhões de pessoas ainda preferem abraçar a fé.
Como você explica essa necessidade incontrolável por Deus?
Eu
só posso dizer que Ele é muito real, muito necessário para milhões de
pessoas. Também temos de admitir que, para muitos de nós, talvez 10%,
15%, essa necessidade não existe. Mas a senhora Watts não disse nada que
eu já não soubesse. Não foi como uma revelação no caminho para Damasco.
“Eu acreditava em algo, mas agora não acredito mais.” Ou: “Eu
acreditava naquilo e agora acredito nisso.” Foi apenas a maneira como
descobri que não podia acreditar no sobrenatural. Eu não acreditava e
não podia acreditar. É algo diferente de um momento de convicção ou de
um momento de descoberta. Mas ainda assim se tornou óbvio para mim, como
disse Pascal, “do jeito que fui feito, não posso acreditar”.
Como disse, você escreveu esse livro a vida toda.
É muita gentileza você notar isso com tanta ênfase.
Esse longo caminho que o levou a sua inquestionável objeção à fé religiosa foi fácil ou doloroso?
Acho
que foi menos doloroso do que a experiência de muitos dos meus amigos
cristãos, muçulmanos e judeus após investiram tantos anos da vida em uma
fé que sempre se mostrou inútil. Para mim, é um compromisso
intelectual, que é tentar fazer as pessoas entenderem que a melhor vida é
a que estuda a razão, ironia, literatura, ciência, humor. E que há
outras coisas que fazem a vida a não valer a pena. Nós não devemos nada à
ditadura do sobrenatural.
Será
que isso tem algo a ver com nossa fragilidade, com a nossa “essência de
vidro”? É uma bela definição do roteirista francês Jean-Claude
Carrière, que escreveu sobre a nossa “essência de vidro”.
Para
mim, não há dúvidas. Somos uma espécie parcialmente racional que tem
muito medo da morte, do desconhecido, do escuro. Mas também é muito
presunçosa, diferentemente do que outros animais. Acreditamos que o
universo foi criado para nós. E isso nos convenceu de que nada foi por
acaso. Nós temos de ser o centro, o objeto de tudo. Claro! Entre o nosso
medo e o nosso egoísmo, é muito fácil vender a religião para nós. É
claro que somos o centro de tudo, com o sol girando em torno de nossa
terra! Nada seria mais provável. É tudo para mim, para moi. E é muito
difícil perceber que tudo isso é besteira.
Seu
livro ilustra muito bem como a religião foi prejudicial ao longo dos
séculos e quantas atrocidades foram cometidas e ainda são cometidas em
nome de Deus.
Não em nome de Deus, mas por causa da crença em Deus.
Mas
ao mesmo tempo há razões por detrás delas [religiões]. E essas razões
são a luta constante pela dominação, pela expansão, além do medo
constante daquilo que é diferente. Medo e desprezo pelo que é diferente.
Você acredita que, sem a religião, essas lutas acabariam?
Não.
Vou dar um exemplo. O cristianismo copiou o judaísmo. E o islamismo
copiou o cristianismo e o judaísmo. São plágios, mas o monoteísmo é
original. É a suposta aliança entre Deus e o povo judaico. Segundo os
judeus, Deus os mandou rezar toda manhã, e os homens têm de dizer:
“Graças a Deus que não sou mulher”. E as mulheres dizem: “Graças a Deus,
eu sou o que sou”. E ambos devem agradecer por não serem gentios ou
escravos. Mas isso não foi criado por Deus, mas pelos homens. Pelos
"homens", para ser exato, do sexo masculino. Assim eles mantinham as
mulheres em seus lugares. Assim é fácil. Só um idiota não vê isso. Deus
não decidiu isso. Os homens usaram a religião para controlar as
mulheres. No entanto, o impulso por controlar as mulheres existiria
mesmo que não acreditassem em Deus. Só que seria mais difícil convencer
as meninas de que elas eram propriedade dos homens se não dissessem que
esse era o desejo de Deus. Dizendo que era o desejo dos homens, elas não
ficariam surpresas. Dizendo que era a vontade de Deus, elas poderiam
aceitar, como a exemplo da existência de escravos. Deus quer que haja
escravos. É diferente de os homens quererem possuir outras pessoas.
Então, com o uso da religião, com a invenção da divindade, você pode
disfarçar o que obviamente seria uma ditadura débil e hipócrita criada
pelo homem. Então livrar-se da ideia do sobrenatural é um passo – apenas
um, mas o mais importante –, talvez o primeiro passo, talvez o maior
passo no caminho para a emancipação.
Até
ler o seu livro, eu não sabia quantas criaturas divinas tinham nascido
de virgens como a Maria. Você diz Buda, Krishma, Perseu, Hórus,
Mercúrio...
Deuses
civilizados. Eu não conheço nenhum deus na mitologia - escrevi um
parágrafo sobre isso - que não tenha nascido de uma virgem. Seria
impossível o cristianismo vender a sua religião se não tivesse dado
continuidade a essa tradição egípcia, asteca, persa, mongol. Até Buda
nasceu de um corte no corpo de sua mãe. Tudo, menos pelo canal vaginal.
Uma via impura. Deus, por alguma razão, prefere usá-la como uma mão
única.
Isso seria o medo eterno do sexo ou a necessidade de criar, para Deus, uma origem diferente do sistema biológica humano?
Com
certeza é o medo que a religião tem do sexo. Mas também é a repulsa
masculina pelo que o homem mais deseja. Os homens precisam das mulheres e
não gosta do fato de que precisam delas. Eles precisam muito delas e
odeiam ter de precisar. Eles repugnam essa necessidade. E a religião
transformou isso em um sistema e o torna sagrado. Minha primeira mulher
era ortodoxa grega. Era cristã oriental. Quando ela menstrua não podia
ir à igreja. Não podia receber o sacramento da missa. Acho que isso
também valia para as católicas e com certeza para as judias. E a repulsa
pelos fluídos menstruais femininos é muito comum no islamismo e em
outros cultos. Isso vem da antropologia humana, não vem do céu, dos
planetas, não vem do sol ou da lua. Vem de formas muito primitivas da
antropologia humana. Isso é a primeira coisa é que preciso saber.
Falemos
das três religiões monoteístas. Você mergulhou na leitura das
Escrituras, em uma mesma história contada de três maneiras diferentes.
Mas não ficou claro para mim como vê os três homens mais conhecidos da
humanidade: Moisés, Maomé e Jesus. Fale sobre eles.
Moisés
é uma figura mítica que foi inventada muitos séculos após a sua suposta
morte. O Torá, a Bíblia judaica, tem aproximadamente quatro autores. O
Pentateuco, os primeiros cinco livros do Velho Testamento,
Moisés inventado?
Os
estudiosos da Bíblia sugerem pelo menos quatro autores que se
contradizem e às vezes se sintetizam. Ninguém, além dos judeus
fanáticos, acredita que Moisés foi o autor do Torá ou que Deus a ditou
para ele, o que, nesse caso, ele seria autor de segunda mão. Maomé, que
também teria escrito o livro de Deus – ditado pelo arcanjo Gabriel – não
é um figura tão mítica, tão lendária. Provavelmente ele tenha existido.
É bem possível que tenha existido. Ele está nesse limite, entre a
existência e a lenda. Jesus de Nazaré está ainda mais nesse limite, como
Guilherme Tell, Robin Hood e o Rei Artur. Com certeza, muito do que foi
escrito sobre Jesus foi feito, como no caso de Moisés e Maomé, séculos
após a sua morte por pessoas que evidentemente não o conheceram, pessoas
muito tendenciosas. Mas o esforço que fizeram para tornar isso
realidade sugere que houve alguma participação de um personagem
histórico. Em todo caso, há o desenho de criar uma história que
fortalece uma crença.
Como você descreveria Jesus na época em que viveu?
Na
melhor das hipóteses, os seus partidários que escreveram sobre ele não
concordam sobre o seu nascimento, sua vida, sua morte e sua suposta
ressurreição. Os quatro evangelhos se contradizem sobre isso. Mas
suponhamos que eles tenham tentado fazer o melhor possível, havendo
concordância em relação à morte horrorosa. Ou não horrorosa. Para mim, a
pergunta mais importante é: é legítimo que os cristãos digam “alguém
morreu pelos seus pecados” sendo que essa pessoa na verdade não morreu?
Imagine uma questão moralmente mais importante: se alguém se joga em
cima de uma bomba que explodiria em uma sala de aula e absorve o
impacto, morrendo para salvar as outras pessoas, podemos respeitar isso.
E se for diferente, E se essa pessoa puder se levantar dois dias depois
e disser: “Eu estou ileso”. Isso diminui a admiração que temos pelo
sacrifício. O cristianismo tem todas essas questões morais que não foram
resolvidas.
Voltando
às escrituras, você disse que o Velho Testamento foi um pesadelo, mas o
Novo Testamento foi mais cruel... O que é tem de tão terrível?
O
velho Testamento é um pesadelo porque tem o mandado divino oficial da
limpeza étnica, como chamamos hoje, a destruição de outros povos. Na
verdade, é uma limpeza étnica genocida que destrói até a última criança,
dos midianistas, dos amalecitas e outros. Essas raças deveriam
desaparecer. Suas terras deveriam ser tomadas. E se houvesse
sobreviventes, de preferência moças, elas deveriam ser escravizadas e
por aí em diante. Era um mandado divino para tudo isto: escravidão,
genocídio, assassinatos de crianças, etc. E roubo, conquista,
desapropriações. Imperialismo do pior tipo. Depois que os midianistas,
amalecistas e moabitas foram destruídos, pronto, eles não sofreriam mais
por não serem judeus ou por não terem uma aliança com Deus. Mas aí eles
já estavam mortos e pronto, não havia inferno. Mas, pelo Novo
Testamento, eles seriam torturados após a morte, para sempre. Essa ideia
tão cruel nasceu com Jesus, que disse pela primeira vez: “Se você não
concorda com o que ofereço, saia daqui e vá para o fogo eterno”. Acho
essa é a ideia mais cruel já proposta na História, hoje muito pregada
pelos assassinos suicidas do Islã. É o ensinamento centro de sua
doutrina perversa.
Por
outro lado, sua leitura do Corão o fizeram dizer que o Islamismo é ao
mesmo tempo é mais interessante e a menos interessante das religiões
monoteístas. Falemos do que é o mais interessante no islamismo.
O
islã alega ser a culminância. Talvez devemos dizer a “consumação” da
“revelações” de Abraão, Moisés, Jesus. Ele não as nega, apenas diz que
agora Deus as completará com suas últimas palavras, depois das quais não
se precisar questionar mais nada. Sem mais perguntas porque todas já
foram respondidas. Só precisamos reconhecer as boas novas e nos ajoelhar
diante delas. É uma doutrina muito perigosa, é claro, porque sugere
literalmente que a época do questionamento humano chegou ao fim. Que já
temos as informações de que precisamos. E nada pode ser pior do que
isso. A mensagem do Corão ainda traz, no fundo, uma ameaça indireta: “Se
você não concorda, há algo muito errado em você e você precisa entrar
na linha”. E as medidas a serem tomadas devem ser muito severas.
Mas isso também é válido para outras religiões monoteístas?
Sim,
é verdade. O sr. Ratzinger, Herr Ratzinger, o bávaro que se diz “bispo
de Roma”, e cujos partidários, mas não eu, o chamam de “papa”, disse
recentemente que a Igreja Católica Romana é a fé verdadeira. É claro que
ele não poderia dizer outra coisa. Os ensinamentos da igreja estão aí, e
ele quis reafirmá-los porque houve um enfraquecimento da doutrina
cristã. Mas isso é dito desde antes do profeta Maomé. Acho que a
diferença é que os clérigos muçulmanos dizem: “Nos conhecemos a Bíblia
[cristã], mas a nossa vem depois, é a última, é a definitiva”. É mais
parecido com o que os cristãos falam sobre os judeus. Ou dizem que eles
[judeus] fizeram tudo errado, que mataram Cristo, que são hereges; ou os
veem com bons olhos e dizem que agiram bem, que inventaram o monoteísmo
e que só precisam entender que o Messias já veio, que precisam mais
esperá-lo. Para mim, como ateu, todas as religiões são falsas. Elas são
falsas do mesmo modo: preferem a fé à razão.
Há
um capítulo muito interessante no seu livro, o mais generoso, eu diria,
no qual você faz a pergunta: “As religiões fazem as pessoas se
comportarem melhor?” E surpreendentemente você diz sim quando fala de
Martin Luther King.
Não, eu digo que não. Lamento.
Eu entendi que você...
O
que eu disse é que a luta pelos direitos civis dos afro-americanos, dos
negros americanos, estava pronta muito antes de o dr. King nascer e foi
criada por ateus, leigos e negros.
Você reconhece o papel importante que ele teve?
Retoricamente,
a justificativa para o racismo e a escravidão era cristã, especialmente
a cristã. É muito inteligente, retoricamente, poder usar a linguagem do
cristianismo dialeticamente, mas não ajuda a provar que o racismo e a
escravidão são moralmente condenáveis. Nos termos do Velho e do Novo
Testamentos, eram um caso encerrado. É apenas uma grande vitória da
propaganda: uma vitória retórica porque a religião nunca fez ninguém se
comportar melhor. Mas certamente não poderemos dizer que religião não
fez as pessoas agirem pior ou não poderíamos usar a justificativa cristã
para a escravidão por mais de 200 anos e a justificativa judaica antes
disso. Todas as justificativas para a escravidão são religiosas.
Você
pertence a um pequeno e seleto grupo de evolucionistas que propõem um
Iluminismo renovado, centrado no homem. Pessoas como Richard Dawkins e
Daniel Dennett, que se chamam de brights, iluminados.
Vou
definir assim: eu não posso dizer que tenho uma luz interna. Se você
disser que vê isso em mim, eu fico honrado. Mas eu não posso dizer que
você deve me ver assim porque seria arrogante de minha parte. O centro
do sistema é o ser humano ou a humanidade. Passamos muito tempo tentando
mostrar às pessoas que foi a igreja que nos quis convencer de que o
universo todo girava ao nosso redor. Por isso não gostavam do Galileu.
Queriam que acreditássemos que o Sol girava em torno da Terra, que o
universo todo estava centrado em nosso globo. Nós dizemos às pessoas ao
contrário. Nós não estamos nem na periferia distante do universo
conhecido. É hora de entendermos como nosso papel nisso tudo é pequeno.
Só quando tivermos um senso de proporção é que provavelmente poderemos
ver isso de forma racional.
Mas
a “luz interior” também é uma definição de Deus. E há outras. Por
exemplo, eu peguei do filósofo de esquerda Toni Negri, que não é
exatamente um homem religioso. Ele diz que a única definição possível
para Deus é o excesso, a superabundância, a alegria.
Nós
não usamos a razão o suficiente. Nós negligenciamos nossas faculdades,
do raciocínio, questionamento e ceticismo. Nós não a usamos de mais, nos
a usamos de menos. Será um grande dia quando isso existir em
abundância.
De todo o modo, podemos acreditar que a humanidade está evoluindo em direção a esse esclarecimento?
Não acho que a humanidade esteja evoluindo.
Nem um pouco?
Não.
Acho que no momento estamos regredindo. As forças da teocracia crescem
muito rápido. E de modo mais confiante. E com mais violência e mais
adeptos que as forças da razão. O período do esclarecimento humano pode
parecer uma fração de segundo muito breve, muito pequena na evolução
humana, entre o ano de 1680 e hoje. E talvez esteja para sofrer uma
eclipse.
Muito obrigada sr. Christopher. Foi muito bom conversar com você.
Fonte: Ornitorrinco
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