A perna mecânica de Gabriel Neris caiu logo após a largada dos 100 metros rasos e ele terminou a corrida num pé só
Logo depois da largada Gabriel Neris sabia que não venceria os 100
metros rasos. A derrota era uma certeza porque o garoto de 15 anos
apoiou a perna direita, que é mecânica, no chão e a prótese se soltou.
Enquanto os adversários ganhavam velocidade, ele desabava de costas na
pista de atletismo.
Mas Gabriel se enxerga como um atleta e o
código do esporte manda cruzar a linha de chegada. Com este pensamento
na cabeça, agarrou a perna mecânica, deu um jeito de levantar e
percorreu os 90 metros restantes pulando num pé só. Quando os
espectadores entenderam o que estava acontecendo começaram a aplaudir.
Os adversários também aderiram e Gabriel completou os 100 metros, sua
prova preferida no atletismo, sendo homenageado. "Quando tava no chão
senti que tinha de terminar a prova senão não ia ser um vencedor. Senti
emoção. Foi melhor do que ter ganhado a prova".
Ele havia
obtido medalhas no salto a distância e salto em altura e desta vez o
prêmio do garoto foi o reconhecimento das pessoas que estavam no
Ibirapuera no último domingo assistindo a etapa de São Paulo do Circuito
Caixa Loterias de paradesporto. As fotos ganharam o Facebook e a mãe
logo ficou sabendo. Os primeiros cumprimentos foram enviados numa
mensagem de celular e na sequência Claudia Regina Neris extravasou o
orgulho em um telefonema.
Os outros competidores fizeram
questão de cumprimentar o jovem que só foi fixar a prótese depois de
terminar os 100 metros rasos. "Também fiquei emocionado, achei que
ninguém ia me aplaudir".
As palmas são bem-vindas. O que
Gabriel não gosta de receber são olhares de pena de quem cruza com ele
no dia a dia. Justifica que faz todas as atividades de uma pessoa com as
duas pernas: pratica esportes, estuda, anda de bicicleta, além de pegar
o ônibus para escola e ir ao treino sozinho. A família mora em Bady
Bassit (SP), cidade de 16,1 mil habitantes e distante 454 quilômetros de
São Paulo.
Para treinar, ele viaja 18 quilômetros de São José
do Rio Preto, onde fica o Centro de Treinamento Integrado do Eldorado.
"Não sinto falta de nenhuma coisa, faço até melhor as vezes. Tem pessoas
que não vão atrás, ficam pensando em outras coisas."
Não
significa que a vida do garoto esteja isenta de problemas. As próteses
são caras e as substituições uma necessidade para quem está em fase de
crescimento. Mas o equipamento nem sempre é conseguido na velocidade
adequada. A mãe conta que ele já andou manco porque a perna mecânica não
era do mesmo tamanho da outra.
Mas Claudia afirma que nem
nestas condições o garoto fica sem. "Ele usa a prótese dele o tempo todo
desde os dois anos. Só tira para tomar banho e dormir. Só não usa
quando ela quebra, aí tem que andar pulando". O garoto se recusa a
utilizar muleta e isto rendeu bullying no colégio.
O apelido de
saci irrita Gabriel e a mãe precisa resolver a situação. "Aí ele já não
curte e faz uma briga. Se chamar ele de saci parece que o mundo para
ele acaba. Eu tenho que ir na escola, explicar para diretora que ele não
gosta. Ninguém gosta, ninguém quer ser chamado de saci. Ele fala que
buliu com ele."
A situação é chata, mas menor diante de outras
dificuldades. Claudia era faxineira até Gabriel nascer sem o fêmur e a
rótula do joelho. Foram quase dois anos correndo atrás de médicos até
pior diagnóstico possível para o caso ser decretado: amputação da perna
direita.
"O dia que (o médico) falou eu não queria ouvir mais
nada. Ver meu filho com uma perna. Eu queria meu filho com as duas
pernas. De falar dá vontade de chorar. Nunca imaginei que ia acontecer
isso com meu filho."
Mas o garoto nem se importa em ter perdido
a perna direita aos dois anos. Mostrou isto quando a família atendeu ao
conselho da fisioterapeuta de procurar o paradesporto. Logo que chegou
no centro de treinamento se sentiu em casa porque havia pessoas da mesma
idade e problemas semelhantes treinando e viajando para competir.
Complicado mesmo foi a véspera da primeira prova, em 2008. A largada
estava marcada para as 7h, mas o jovem estava acordado às 4h e nada dos
nervos deixarem ele voltar a dormir. Passada a estreia, deslanchou e
conta orgulhoso que foi a Bauru e São Paulo participar de campeonatos. O
jovem sonha um dia estar numa Para-olimpíada e acrescenta que aceita
mudar de cidade para treinar se for preciso.
Terminada a
carreira de paradesportista, quer virar promotor. A escolha ocorre
porque ele lembra da ajuda que "doutor Aparecido", do Ministério Público
em São José do Rio Preto, deu para a mãe que lutava para conseguir
próteses.
Claudia nunca se conformou que a falta de dinheiro
prejudicasse a qualidade de vida do filho e acha lindo que o garoto
queira um emprego em que pode ajudar deficientes físicos. Como mostrou
no último domingo, não vai ser pela falta de uma perna que Gabriel
deixará de cumprir o propósito.
visto no UOL
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