O corpo da Travesti e a abjeção

Qual o corpo da travesti? Sim. Essa é uma pergunta que deve ser feita. É comum, ouvirmos em todos os lugares associações entre as travestis e a perversão, a sujeira, a imoralidade ou a prostituição. É como se quando se trata da travesti, a prostituição fosse uma qualidade inata de seu ser.




Sei bem disso. Quando disse à minha avó que queria ser uma travesti, ela logo pensou: “mas vai se prostituir?”. Foi essa uma das suas primeiras preocupações. As que vieram em seguida diziam respeito a “quero que você tenha um bom futuro” e ” quero que você seja alguém”. Neste contexto fica claro, ser uma travesti, aos olhos da cis-heteronorma, é ser um “ninguém”. Uma manifesta ausência de humanidade. A filósofa judia Judith Butler, chama a esse processo de “não ser nada”, de “corpo abjeto”, ou seja, um corpo que está a margem, monstruoso, que perdeu sua condição de sujeito.

Um corpo que perdeu a condição de sujeito? Mas como assim Fernanda? Você está enlouquecendo! Corpos são corpos. Sujeitos são sujeitos. Não, não é assim. É por meio do corpo que nos inserimos no mundo. E não é qualquer corpo que se insere, é um corpo marcado, lido, entendido, significado e ressignificado pela cultura. Um corpo sexuado e sexualizado. Neste sentido, nossa cultura cria e desenvolve um ideal de corpo. Aquilo que Foucault chamou de corpo utópico. Um corpo são, em constante trânsito, mas agarrado a sustentáculos de “ordem”. E de que ordem estamos falando? Da ordem cisgênero e heterossexual, que, desde cedo, cria corpos para cumprir funções produtivas e reprodutivas como se elas fossem inatas e, “naturalmente”, inquestionáveis. Consequentemente, qualquer corpo, qualquer identidade que ultrapasse essas funções tão bem delimitadas das normas de gênero é entendido como abjeto, desviante, inumano.

Para os corpos abjetos há apenas um lugar. Assim como, nos antigos contos de fadas e histórias de horror, o monstro deve ser perseguido e mantido fora da convivência humana, os transgressores de gênero - as travestis – são condenadas à marginalização. Devem viver longe dos seres de bem, asiladas em ruas escuras e muquifos onde não possam ser vistas. Faça o teste e nos diga: Quantas travestis você vê a luz do dia? Quantas vê a noite? Perceberá que são poucas as que serão vistas de dia. Somos condenadas a existência na margem, a existência subalterna do monstro de Mary Shelley.

Entretanto, o corpo abjeto da travesti é ainda alvo de um paradoxo. Ao mesmo tempo em que deve ser ocultado, ele surge como corpo público, da conta e do domínio de todos. É o corpo ao qual nos perguntam: “Você tem pau?”, que se sentem a vontade para nos dizer como deve ser, que pedem, como recentemente me pediu um amigo: “posso tocar no seu peito depois que você colocar silicone? Tenho curiosidade!”. É um corpo que é frequentemente exposto, revirado, medido, catalogado e esmiuçado. E tudo isso, justamente, porque não somos sujeitos. Somos sub-sujeitos. Abjeções. Transgressoras. Alguns podem dizer que eu exagero, que a curiosidade é normal. Ora, veja só, alguém costuma perguntar à mulheres cisgênero como são suas genitais? Alguém costuma pedir, do nada, para tocar em seus seios, apenas para saber se é “normal”? Não. Então é claro que uma situação como essa, não passa de uma forma de transfobia, ou seja, de violência.

Essa “curiosidade” é objetificadora e perversa. Ela nos transforma em seres de zoológico. Perigosos, mas que podem ser exibidos, de vez em quando, para saciar a vontade dos humanos superiores, dos normais.

Que fique claro: O corpo da travesti não é “naturalmente” abjeto. Ele é convertido em abjeção pela cis-heteronorma. Ou seja, o sistema de gênero, que classifica os corpos segundo o arbitrário parâmetro genital (que exclui pessoas intersexo). Não é nada além de um sistema de controle biopolítico, uma forma de exercer poder sobre os corpos. As noções de masculinidade e feminilidade são apenas interpretações que aprendemos a atribuir aos dados naturais, que por si só, não são nada. O gênero é uma categoria que tenta determinar como devemos existir, e nos sentencia a existir apenas de uma forma. Eu vos pergunto, caro leitor: Só é possível existir no mundo possuindo um gênero? Ser homem ou mulher é realmente a coisa mais importante em relação a alguém?
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